sábado, janeiro 16, 2010

Mal-me-quer, bem-me-quer

Há algum tempo atrás fui convidado por um ilustre amigo (que ainda não vive na internet, motivo pelo qual não posso deixar aqui um link que vos ligue a ele) a escrever algo no âmbito da internet, nomeadamente, contestando, ou não, a tese de Andrew Keen no seu livro 'O Culto do Amadorismo'.

O texto será publicado em Fevereiro no primeiro número de uma revista da JSD que nasce com o contributo, entre outros, desse meu amigo Pedro Miranda.

Aqui seguem as letras com que contribuo para esse projecto. O título que dei a este artigo no blog corresponde ao título do artigo a ser publicado na revista. Sem mais delongas, aqui vai:

«Andrew Keen, no seu «O Culto do Amadorismo», vem alertar o Mundo para os problemas que estão a surgir como consequência do desenvolvimento da internet. Ou melhor, do desenvolvimento da possibilidade de qualquer ‘amador’ poder aceder à internet e publicar lá todos e quaisquer conteúdos sem haver uma prévia filtragem dos mesmos.
E pega, como estandarte da sua tese, em dois maus exemplos, no meu ponto de vista: a Wikipédia e os blogues.
Vamos à Wikipédia. Chamam-lhe ‘enciclopédia’. Não concordo. Em www.infopedia.pt, enciclopédia define-se como «1. obra de referência que inclui informação de fácil compreensão sobre todos os ramos do saber humano; (...) (Do gr. egkykliós paideía, «o conjunto das ciências»)».
Ora, a Wikipédia vai aumentando os seus conteúdos através da escrita de ilustres desconhecidos que vão dando achegas do que sabem acerca dos elementos a definir. Falta-lhe o carácter de ‘obra de referência’ enquanto escrita por técnicos de reconhecido mérito dentro da sua área. Portanto, eu que nada sei sobre fissão nuclear, mas que já ouvi dizer algumas coisas sobre o tema, posso perfeitamente ir lá colocar, como verdades absolutas, essas informações não confirmadas. Assim, partindo desta premissa - de que a Wikipédia dá conhecimento aos seus visitantes - parece que facilmente se percebe que esta ferramenta não é confiável. No entanto, Keen passa páginas e páginas a dizer o quão má ela é.
Por outro lado, quem entrar em www.infopedia.pt logo perceberá que é uma página na qual poderá confiar. Esta é uma página com dicionário e enciclopédia, ambos gratuitos como a Wikipédia, mas é um serviço gerido e fornecido por uma conhecida editora nacional. Sem a contribuição de ‘amadores’.
Será assim tão difícil, como Keen vaticina, descobrir em qual destes dois locais se encontrará informação mais fidedigna?... E não haverá assim tanta gente no Mundo com discernimento suficiente para fazer este distinguo?
No entanto, continua Keen a ter razão: a informação que é colocada numa grande maioria dos sítios da internet não é filtrada. De facto, hoje em dia qualquer pessoa publica qualquer coisa para todo o Mundo sem haver, como na indústria tradicional da publicação, uma filtragem do conteúdo e consequente selecção do que ‘merece’, ou não, ser publicado. Mas será isso um problema assim tão grave? Será grave eu agora ter acesso directo às preocupações dos iranianos vividas no último período pós-eleitoral? Será mau eu agora ter acesso a imagens sem edição captadas na Indonésia momentos após o tsunami de 2004? Será mau eu saber, quase no próprio momento em que se iniciou, que começou uma revolução num determinado país? Será assim tão mau eu receber estas informações todas directamente de anónimos que se encontram nos locais dos acontecimentos sem ser filtrada por jornalistas?
Eu confiaria mais na veracidade do trabalho jornalístico se não soubesse da existência de poderoso grupos económicos que estão por detrás, muitas das vezes a ditar orientações editoriais. Assim, Keen não me convence com o argumento de que a informação publicada deve ser, necessariamente, filtrada por profissionais da área. Pelo menos, nem toda. No caso de relatos factuais, não creio. Quanto aos artigos supostamente científicos da Wikipédia, nisso estamos de acordo. Não é uma ferramenta na qual possamos confiar.
Mas neste tempo em que se estimula o uso dos computadores (o aparecimento do Magalhães é o espelho disto) e, consequentemente, da internet, apenas há que continuar a educar e ensinar de forma a formar cidadãos inteligentes. E alguém inteligente e informado, saberá certamente que usando a internet, o filtro tem que ser ele próprio. Problema resolvido.
Agora os blogues. Keen ataca a sua capacidade de manter no anonimato (não rigorosamente no anonimato. Normalmente os bloggers assinam com nicknames, isto é, alcunhas que os identificam) autores que podem escrever tudo o que lhes apetecer sem consequências pelos danos que a sua escrita possa causar. Será assim, ou melhor, será que só agora com a internet é assim? Parece-me que não. Houve já - e por todo o Mundo - várias condenações de autores de blogues, nomeadamente, por crimes que atentavam à honra de determinadas pessoas. Mas o mesmo se passou já com ‘donos’ de colunas de opinião em jornais publicados segundo o ‘método tradicional’. Comportamentos violadores de direitos de terceiros serão sempre sancionados pela Lei. E a questão do anonimato? Poderá tornar mais difícil a investigação, mas a história mostra-nos que sempre se escreveu à sombra de pseudónimos. Este é um falso problema. Não é algo novo que surgiu com a internet, como Keen parece querer afirmar.
Um blogue é, na esmagadora maioria das vezes, um espaço de publicação de opiniões pessoais do(s) seu(s) autor(es). É do conhecimento comum. É a ‘coluna de opinião’ do ilustre desconhecido mas também de muitos autores conhecidos. Ao querer ver no blogue um perigo, Keen não está a querer alertar para nada. Cria, antes, um novo falso problema. Se eu quero saber o que X, Y ou Z escreve, vou ao seu blogue, Twitter, Facebook, etc.. Se não quero, não vou. Se acho que o seu comportamento não é correcto, posso dizer-lho. Ou se for criminoso, denunciá-lo. Ponto final.
No presente continuo a achar a internet uma ferramenta importantíssima, nomeadamente, de trabalho e ao nível de obtenção de conhecimento. Não só no acesso ao muito que por lá se escreve mas também pela possibilidade de comunicação gratuita e em tempo real com pessoas que vivem noutros contextos sócio-culturais completamente distintos do nosso. Aceder ao que um ilustre desconhecido escreve, vivendo num contexto completamente distinto do meu, é algo que considero importante, mas de que Keen não fala.
Com certeza que tem os seus riscos. Como tudo. E o da desinformação é um deles. Mas na minha óptica, mais preocupante serão ainda os riscos associados à criminalidade. E nesta área foram já identificados muitos riscos e a cada dia que passa mais ainda, tendo vários Estados feito já as suas ‘declarações de guerra’. A UE está atenta ao fenómeno. E Portugal, com a Lei do Cibercrime, Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro de 2009, veio transpor para a nossa ordem jurídica a Decisão Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adaptar, assim, o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa.
O alerta de Keen não trouxe nada que uma grande parte dos utilizadores ‘assíduos’ da internet já não se soubesse e outrossim os Estados. Talvez, também por isso, tenha gerado polémica.»

4 comentários:

Anónimo disse...

Mas a Infopédia não é gratuita e a Wikipédia é. Além disso, a última tem muito mais conteúdos do que a primeira.

Dse7e disse...

De certeza? É que sempre tenho conseguido fazer pesquisas para tudo o que me interessa na Infopédia e nunca paguei para a aceder...
De todo o modo, o meu ponto é do que, na Infopédia o conteúdo é filtrado por profissionais. Na Wikipédia tal ainda não acontece, pelo menos, como regra.
O cerne da minha 'tese' está aí. Ou somos suficientemente inteligentes e estamos treinados para sermos nós o filtro - e aí não há problema -, ou então temos que procurar - porque as há - ferramentas cuja informação é mais fidedigna:)

Nasdaq disse...

Concordo contigo.
No entanto, e quanto à Wikipedia, tenho de concordar com duas coisas que o comentário anónimo realça: gratuitidade e volume de informação que pode constar da Wikipedia. A estas vantagens contrapõem-se as desvantagens que falaste e que podem deitar por terra os objectivos da Wikipedia. A wikipedia nunca poderá alcançar a qualidade de um produto pago, pese embora o seu potencial ultrapasse facilmente aquele produto. A questão é saber se as pessoas conseguirão utilizar bem esse potencial.
Quanto ao autor que falas, o tal A. Keen, baseando-me nas informações que dás sobre o conteúdo da sua obra, parece-me que as críticas que lhe apontas são válidas e, por isso, concordo contigo.
O tema é vasto e não vou aqui dissertar sobre ele, pois tu já o fizeste de forma excelente. Limito-me, assim, a aderir ao douto artigo :)
Ah, só um pormenor a acrescentar no que respeita à "filtragem" dos conteúdos da internet. Se tal acontecesse, a censura camuflada e a desinformação que reina nos meios de comunicação tradicionais dominaria a internet e lá se ia a única fonte de informação que ainda "viaja" intacta. Claro que por viajar intacta exige que nós sejamos o "filtro", como tu referes.
Convém lembrar que a censura existe tanto num regime ditatorial como num regime democrático. A diferença reside na forma como essa censura é realizada e nada mais.

Abraço!!

Dse7e disse...

Ora, estamos de acordo!:)